AINDA A MINHA RUA ALMEIDA GARRETT


A Flor com o Guri sem guerras

«Muito haveria para escrever... fiquei a pensar na quantidade de memórias que uma rua consegue conter... Se todos os que aí vivem e viveram fossem acrescentando uma pequenina frase... Eu lembrei-me logo que era a rua onde viviam os meus bisavós, com o seu quintal a preencher grande parte da rua...Por aí passei diariamente, durante os anos da escola primária, para aproveitar a boleia do Senhor Professor Fernando...Num bonito carro, um carocha!!! Se estava a chover, a água na vala corria como um rio... e logo apareciam os girinos, que se apanhavam para meter em frascos... A chuva também fazia grandes charcos, no saibro, uma delícia para saltar lá para dentro com botas de borracha... 
Parabéns por mais um bonito texto!!!!!»

Cláudia

Em “Comentários”

NOTA: O texto que escrevi neste meu blogue de memórias e estórias sobre a minha rua mereceu da Cláudia um comentário que aqui transcrevo e que retirei do sítio certo, em “comentários”. De facto, é como ela diz, quando sublinha que ficou «a pensar na quantidade de memórias que uma rua consegue conter…»
A vala de que ela fala parecia um autêntico rio, mesmo caudaloso em pleno inverno. Um primo meu costumava fazer uma espécie da jangada para navegar, enquanto outros se entretinham a fazer barquinhos que por vezes desapareciam levados pela corrente impetuosa. Ele era o navegador, com ares de importante.
Uma outra faceta da minha rua é a solidariedade patente entre vizinhos, à moda antiga, com troca de produtos da horta e fruta. E quando alguém adoece, não faltam as preocupações naturais, com troca de informações. 
Tivemos um cão, o Guri, que só estava bem na rua, para incomodar sobretudo os ciclistas. Até se tornou antipático para alguns. Mas um dia foi gravemente atropelado, necessitando de ser intervencionado para curar as mazelas. Pois a vizinhança até vinha visitar o Guri e procurar saber das suas melhoras. E a minha mulher, a Lita, lá ia dando nota da evolução da cura, falando dele como se uma pessoa fosse. 
A Cláudia evoca também os seus bisavós, o Tio João Catraio e a Tia Carolina, de que hei de falar um dia destes. É que convivi muito com o Tio João Catraio, com quem bastante aprendi do viver de antigamente.

F. M.


RUA ALMEIDA GARRETT




Moro na Rua Almeida Garrett. Já foi ou ainda é travessa Almeida Garrett. Também foi Almeida Garret e Almeida Garrett ao mesmo tempo. Com erro, só com um “t”. De qualquer modo, e apesar do erro que engana quem nunca ouviu falar ou escreveu corretamente o nome de um grande vulto das nossas letras, gosto dela, porque a vi nascer. É uma rua direita e tranquila. Todos os vizinhos são amigos e gente muito boa.
Quando eu era menino, era um caminho de areia por onde circulavam os carros de vacas carregados de esterco ou de moliço a caminho das terras de cultura. No regresso vinham com erva, milho, feijões e batatas. As alfaias agrícolas ocupavam o seu espaço. E ainda havia lugar sentado para quem ia ou vinha dos campos. O gado estava tão treinado que até conhecia, sem qualquer indicação do condutor, os caminhos das terras e de casa.
O rodado dos carros tornava duro o caminho. Mas no inverno a água da chuva complicava a vida às pessoas e aos animais. Ao lado do caminho, do nascente, havia uma vala-mestra. Chama-se vala-mestra porque recebia águas pluviais de outras valas mais pequenas.
A vala-mestra encarregava-se de levar as águas para a ria. Nos invernos mais chuvosos a vala parecia um rio, tal a força da corrente. E nas marés-cheias, a vala transbordava e tudo ficava alagado. Cheguei a não poder sair de casa. Quando a maré descia, as coisas melhoravam e voltavam à normalidade. Por vezes ficavam enormes charcos que prejudicavam as culturas. O povo até dizia que as batatas plantadas tinham morrido afogadas.
Depois o caminho foi ensaibrado e somente após o 25 de Abril a rua viu o alcatrão, em data que não posso precisar. Mais tarde, na vala-mestra foram aplicadas manilhas e, ao contrário do que se podia esperar, não mais houve alagamentos significativos.
Com a história da minha rua, abreviada, como não podia deixar de ser, já me esquecia de falar de um dos grandes vultos das letras portuguesas, que viveu entre 1799 e 1854. Foi um escritor e homem público multifacetado: poeta, dramaturgo, Par do Reino, ministro. Foi um romântico e o grande reformador do teatro português. Quem há por aí que não conheça Frei Luís de Sousa, Folhas Caídas e Viagens na Minha Terra? E quem de Ílhavo, e não só, desconhece, nesta última obra, o célebre debate que pôs frente a frente um ílhavo e um ribatejano, cada um apresentando-se como o mais valente? E não foi o ílhavo que levou a melhor, com a sua coragem frente ao mar, contra o ribatejano frente ao toiro?





A TITA

A Lita com o Totti e a Tita
Estar no quintal, em dias de sol ou chuva, é um dos prazeres que cultivo, como quem cultiva uma flor para desabrochar na primavera. Olhar as árvores na hibernação, ver as plantas que nascem sem que alguém as tenha semeado, cheirar o verde ora viçoso ora mortiço da vegetação espontânea, experimentar o prazer de deitar a semente à terra e de ver as novidades, mais tarde, ferirem a crosta areenta e estrumada, tudo isto me encanta.

Numa dessas tardes em que a contemplação me deixava voar ao sabor da maré que os ventos envolviam, a Tita surgiu apressada, como quem deseja chegar o mais depressa possível à meta que o seu instinto alimenta desde que nasceu. Passa por mim ostentando uma alegria esfusiante e corre, corre, sem aparente explicação. Depois cheira tudo, em busca não sei de quê. Dou comigo a pensar que isso já nasceu com ela. Chama o companheiro Totti, grita mesmo por ele, em jeito de quem quer alguém com quem possa partilhar a alegria de uma liberdade conquistada. Totti dá-lhe o gosto e corre também, mas a Tita logo volta ao seu prazer de procurar.

UM PARTO NO MEU AUTOMÓVEL

Sede da Obra

Era certo que muitas raparigas entravam grávidas na Obra da Providência, algumas sem saberem, com rigor, o tempo de gravidez. Num princípio de tarde, uma jovem acolhida na casa alerta para a hora do parto. As dores começam a sentir-se e a angústia, natural, manifesta-se. Era necessário conduzi-la ao hospital da Santa Casa da Misericórdia de Ílhavo, como era habitual em casos semelhantes.
Logo a seguir ao almoço, bateram à minha porta duas raparigas apoiadas pela Obra, com o apelo urgente de as ajudar, já que um parto estaria iminente. Apressei-me, naturalmente. A futura mãe entra no meu automóvel, com sinais evidentes de que a hora se aproximava. Deitada no banco de trás, começou a queixar-se. Sentada ao  meu lado,  Dona Maria da Luz Rocha, fundadora e diretora da instituição,  começou a animá-la, dizendo-lhe que faltava pouco para chegar ao hospital.


O MEU AMIGO JERÓNIMO

Vi hoje o Jerónimo. Já não o via há muito. Estava à mesa do café a dormitar, como dormitam todos os velhos. Em qualquer sítio e a qualquer hora. Cá para mim, o Jerónimo estava a ensaiar mais uma das
suas muitas estórias, para contar a quem se sentasse com ele à mesa do café. O Jerónimo é um conversador nato. Basta uma palavra dita por um amigo, em qualquer circunstância, para logo ele disparar:
— Não te esqueças do que estás para dizer…
A partir daí, começava mais uma estória de um rol enorme de recordações que não tinham fim. Mas as estórias até lhe  saíam com graça.
Uns esgares faciais, expressivos, e mãos que enriqueciam os pormenores davam-lhe uma dimensão única. Por vezes, os ouvintes, que outra coisa não podiam ser junto dele, ainda suportavam umas palmadinhas, mais ou menos pesadas, conforme a força das convicções do orador por vocação.
— Pois é, meu caro Jerónimo. Ontem encontrei um amigo que regressou da estranja…
— Ó pá, não te esqueças do que estás para dizer! Aconteceu-me precisamente a mesma coisa. Um dia destes também dei de caras com o Xico, que não via há anos.
E lá vinha a estória do Xico que só o Jerónimo conhecia e que dava para um romance, como costumava afiançar. Com pormenores, ora tristes ora alegres, sempre ampliados ao jeito dos bons contadores de estórias, que, de uma palavra, podem muito bem ditar lindos contos. E no ar ficou perdida a conversa interrompida.
— Ó Jerónimo, ao jantar comi, com a fome que tinha, um frango que…
— Ó pá, não te esqueças do que estás para dizer! Um dia destes, à merenda, com a minha mulher a apreciar, comi um galo de uns dois quilos… Teimava que não era capaz de o comer e quis mostrar-lhe que à mesa ninguém me bate...
Ligadas a essa outras estórias de comezainas saíam cantadas da boca do nosso Jerónimo, qual delas a mais romanceada. É que o nosso homem não era pessoa para deixar para boca alheia a arte de convencer quem o ouvia. E a conversa interrompida lá ficava, mais uma vez, para quando o Jerónimo deixasse, se alguma vez deixasse…
Um dia também eu entrei no jogo do Jerónimo.
— Queres saber que há tempos, à entrada da Barra, um petroleiro…
— Ó pá, não te esqueças do que estás para dizer…
Ora o Jerónimo, um oficial náutico na reforma, não perdoou a minha ousadia de entrar nos seus domínios. Vai daí, entra a desfiar uma carrada de tempestades no mar alto, barcos que eram cascas de nozes,
naufrágios e heroicidades de lobos-do-mar… Até que, cansado de o ouvir, o Jerónimo, voltando-se para mim, perguntou:
— Ó pá, então o petroleiro?
— Qual petroleiro, Jerónimo?

Fernando Martins

NOTA: Jerónimo é nome fictício. De resto, mais uns toques ficcionais para enfeitar a estória, de base autêntica. 

PROPÓSITO

As minhas memórias vão surgir neste blogue ao sabor da maré, ao jeito de partilha com os meus leitores e amigos. Estórias, contos, vivências, experiências, acontecimentos, datas, pessoas, alegrias e,  porventura, algumas tristezas.  

Egas Moniz na estação do Porto

  Quando vou ao Porto, a capital do Norte, lembro-me com frequência dos painéis que decoram a sala de entrada da Estação Ferroviária. Nunca ...