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Recordando o meu irmão: O menino morreu há 12 anos

Armando da Rocha Martins 

(25-10-1941 — 27-3-2007)

Ainda hoje me lembro com saudade do dia em que, empoleirado no muro frontal à nossa casa, encimado por uma rede de arame a que me segurava, o João Edmundo Ramos (primo afastado) me perguntou onde estava o meu menino Jesus. Respondi-lhe que estava a nanar, palavra que me veio de minha mãe, conhecida por Rosita Facica. E a partir daí, tanto quanto consigo recordar, passei a tratar o meu irmão por menino, mais novo do que eu três anos. Ele chamava-me mano. 
Nas conversas que mantivemos, desde sempre e até à sua morte, que ocorreu em 27 de março de 2007, nunca o tratei por Armando, o seu nome, nem ele me chamou Fernando, o meu nome. Menino e Mano ficaram para as nossas vidas, qualquer que fosse a situação em que nos encontrássemos. Para os outros, em geral, ele era o Grilo, apelido da nossa família paterna. Curiosamente, eu nunca fui considerado Grilo ou Facica, o apelido da nossa linha materna.
Três anos nos separavam e os grupos de amigos não coincidiam. Eu prossegui estudos e ele, em determinada altura, optou por trabalhar, depois de o nosso pai lhe perguntar o que é que ele queria na vida. E assim foi.
Depois de algumas experiências profissionais e de uma tentativa de emigração, acertou o passo no comércio e na indústria, onde foi figura preponderante no meio bacalhoeiro, mas não só. 
Casado com a Julita, com dois filhos, o Miguel e a Carla, ficou encantado com os dois netos, o Martim e o Levi, em quem se revia, contando-nos estórias de que se ria e nos fazia rir. Qualquer episódio, por mais simples que fosse, o meu irmão, o Menino, dramatizava-o com graça e arte, como se estivesse a representar num palco de teatro, estando, contudo, no palco da vida, onde as alegrias têm cabimento garantido, de mistura com algumas dores, próprias da nossa natureza frágil. Jamais esquecerei as suas risadas provocadas pelo Martim, que tinha em criança hábitos de chaveiro. Chaves que estivessem a jeito, bolso com elas. Eram suas e guardava-as bem guardadas para ninguém as descobrir. E contava o meu irmão que tinha de lhe telefonar para ele explicar bem direitinho onde as tinha escondido, porque sem elas não podia abrir as portas. E o Martim lá cedia.
Em 2006, quando tive o enfarte, ele ficava a olhar para mim, quantas vezes sem falar, mas eu notava no seu silêncio a inquietação que lhe ia na alma. Há silêncios que dizem mais que mil palavras. 
Recordo-o todos os dias nas minhas orações matinais, num lote de familiares e amigos que vai crescendo, ultimamente com mais intensidade. Que Deus o guarde no seu regaço maternal, para um dia, quando nos reencontrarmos, cara a cara, e nos tratarmos como sempre o fizemos, por Menino e Mano, revivermos, com todo o tempo do mundo, os momentos agradáveis da vida terrena, que os desagradáveis não os queremos lá connosco. 

Fernando, o teu mano

NOTA: Texto publicado em 31 de maio de 2021 no Pela Positiva

DIA DO PAI — O MEU PAI

O meu pai, em cima, à direita, de óculos, no dia do batizado do João Paulo, de quem foi padrinho
Dizem os calendários que hoje, 19 de março, se celebra o Dia do Pai. Pondo de lado as prédicas dos que dizem que estas celebrações não fazem sentido (eles lá saberão porquê), eu continuarei a respeitá-las e a valorizá-las, no sentido de me debruçar sobre a efeméride, ao menos nesta data, com mais ênfase. Mas insisto em dizer que todos os dias do ano tenho presente no meu espírito os meus pais, o meu irmão e outros familiares e amigos. E como crente, por eles rezo todas as manhãs, rogando a Deus que pela sua infinita misericórdia os mantenha no seu aconchego maternal, onde espero estar um dia, que não tardará muito,  pela ordem inexorável da vida.

O meu pai, Armando Lourenço Martins, mais conhecido por Armando Grilo, foi sempre um homem bom, sereno, acolhedor e incansável trabalhador. Não era homem de muitas falas nem de zangas, nem de guerras, nem de bisbilhotices. Honrado e extremamente poupado, comedido nas palavras e pessoa de fé. Quando vinha do mar, fazia questão de visitar o nosso prior, padre Guerra, a quem oferecia uma caldeirada e o tabaco a que tinha direito durante as pescas. E quando chegava a casa até dizia à minha mãe, que bem ouvi, que o nosso prior até o tinha confessado na sala, na altura da Páscoa.
Nunca me lembro de o ouvir criticar ou dizer mal fosse de quem fosse. Foi, por temperamento e formação, um homem responsável. Tenho para mim que as suas qualidades brotaram espontaneamente do facto de ter sido um menino-homem, porque entrou no mundo do trabalho, nas marinhas de sal, aos nove anos, e aos 15 já andava sobre as ondas do mar, na pesca do bacalhau. Naqueles tempos, não se falava de trabalho infantil e muito menos de escravatura. Falava-se, isso sim, da necessidade de sobreviver. Foi órfão de pai. Meu avô, Manuel Martins, morreu da diabetes, tinha o meu pai 12 anos. 
O meu pai, que me lembre, nunca teve férias. Enquanto marítimo, na pesca, só havia férias em caso de temporal. Em terra, nos dias de folga, trabalhava, incansavelmente, no quintal, porque gostava de ver tudo limpo e bem ordenado. Plantava árvores, semeava o que era normal, regava constantemente em épocas de seca e fumava constantemente o seu cigarrito de marca “Porto”, que os meus filhos lhe iam comprar quando já tinham pernas para correr… e tinham de ir mesmo a correr para terem direito a uns tostões para rebuçados. 
O meu pai morreu cedo, aos 61 anos, com um enfarte do miocárdio. Nunca o conheci doente. Resistiu cerca de um mês. E a sua morte fez dele o meu herói. 

Fernando Martins 

Evocando o meu pai — Armando Grilo

Alegria na chegada; a tristeza vinha depois

Armando Grilo



O navio-museu “Santo André” conduz-me sempre a recordações indeléveis, com saudades e memórias de mau pai, Armando Lourenço Martins, mais conhecido por Armando Grilo, contramestre do arrastão que foi campeão das pescas durante muito tempo. Fazia duas viagens por ano e o meu pai só podia estar connosco em curtas férias, ainda por cima envolvido nos trabalhos de preparação para novas viagens.
A partida para mais uma viagem era dia de luto em casa, com a nossa mãe chorosa e eu e o meu irmão calados. Não tínhamos palavras para dizer. E a vida continuava, com as saudades presentes, atenuadas pela ânsia da chegada, só possível no tempo próprio e com boa carga de bacalhau.
Com a partida do banco, rumo a casa, vinha a alegria e os preparativos da receção começavam, aumentando exponencialmente, para que o pai encontrasse tudo direitinho. Casa, quintal, as coisas pessoais de cada um arrumadinhas, que os avisos da mãe não paravam, lembrando que o pai não gostaria disto e daquilo.
O dia da chegada era festa. Corrida para a Barra, olhando sofregamente o arrastão a entrar, com os tripulantes a acenar com força, bonés no ar, como que a dizer «estou aqui!». Nova corrida para o porto de pesca longínqua, junto à EPA (Empresa de Pesca de Aveiro), empresa do “Santo André”. E nós ansiosos para entrar no navio.
Cheiro a pão a sair do forno que ainda hoje me não sai do olfato. Manteiga no pão quente de sabor inexplicável. Ou bifanas mesmo rijas, que sabiam bem como poucas. Olhos postos no pai que no seu camarote nos mimava e nos perguntava pela mãe que esperava no cais. Preparar a mala para abandonar o navio. Lembranças escondidas por aqui e por ali, embrulhadas na roupa ou no corpo, como um tecido fino para um vestido de que a minha mãe muito gostou. Uma garrafa de Whisky para um amigo compreensivo, com a pergunta sacramental: «posso sair, senhor guarda?» E um obrigado sem esperar pela autorização.
E lá regressávamos a casa, a pé, que era perto, mas com muita demora, que os amigos gostavam de saber pormenores da viagem. O meu pai não se cansava de contar os temporais, as boas pescas, os sofrimentos de alguns. E a promessa de que qualquer dia deixaria a vida do mar, para onde fora aos 14 anos.
E em casa, à volta da mala, lá esperávamos pelas lembranças de Saint John's. Era a alegria maior. A tristeza chegaria semanas depois.

Fernando Martins

Egas Moniz na estação do Porto

  Quando vou ao Porto, a capital do Norte, lembro-me com frequência dos painéis que decoram a sala de entrada da Estação Ferroviária. Nunca ...