A BEATA

Um sol radioso entra pela janela do meu quarto em dia de folga. Dias antes, em pleno outono, um frio cortante reclamava agasalhos da estação fria. Era então altura de saborear a benesse da natureza. Sair de casa, caminhar sem destino pelas ruas, olhar a vida sem pressas, mirar gente que corre para cumprir horários, deixar voar a imaginação. 
Caminhar não é só um ritual pedido por um coração que se quer saudável. É sentir o gosto pela vida, beber o ar fresco que dilata pulmões, ver pessoas que se cruzam caladas ou com acenos de simpatia, apreciar a árvore presa à terra que lhe dá o viço e a atira para o alto. É olhar com ternura a criança que treina os primeiros passos na relva do jardim, com a mãe embevecida a ampará-la com o carinho que só ela pode dar. 
Caminhar é ainda encontrarmo-nos a nós próprios em maré de reflexão, é rezar no meio da agitação, do barulho ensurdecedor de carros que circulam com gente agitada. É querer um mundo mais são, mais terno, mais justo, mais fraterno. É desejar ser diferente dentro do que somos. 


No ar, nas ruas barulhentas de pessoas caladas, há sinais do Natal que se avizinha, de prendas que se oferecem nas montras enfeitadas com sentido. Umas mais pobres, para bolsas modestas, outras mais ricas, para gente endinheirada. Há de tudo para todos os gostos e para todas as carteiras. Para quem se deixa levar pelo requinte e para os que se ficam pelo banal e de mau gosto. Há um mundo que exige cada vez mais dinheiro e mais lembranças que dão felicidades de curto prazo. Mas também que geram solidões, que provocam revoltas, que criam dependências. 
No caminhar cadenciado, sem rumo certo, as minhas recordações cirandam por anos vividos com sonhos que se misturaram com vivências que enriqueceram a minha personalidade. A minha, com tudo o que ela tem de pessoal e próprio. Desde menino à juventude das miragens. Daí à idade adulta de experiências feita, de alegrias e mágoas, de projectos realizados e por realizar.
A manhã já vai longa. Longa no tempo que passou e nas lembranças que saltaram da memória para a realidade presente. Um presente que é bem diferente de tempos idos. Outros rostos marcam as paisagens de hoje. Rostos de quem foge da pobreza que um paraíso prometido não ofereceu. Rostos de outras culturas que se entrelaçam com a nossa, acreditando que é possível a fraternidade anunciada há dois mil anos. 
No jardim, cansado da caminhada mas enriquecido pela meditação que o sol benfazejo me proporciona, sento-me num banco. Dali aprecio a igreja matriz que me embalou desde o 25 de dezembro, há tantos anos!, em que me fizeram cristão. Onde mais tarde acordei para a fé e me comprometi na vida em projectos de bons e promissores futuros. 
Olhei para o campo santo onde repousam os meus antepassados, amigos e benfeitores. A minha memória dá mais uns saltos para trás. Amizades leais, amizades francas e abertas, amizades que perduram para além da morte, que continuam actuais no meu espírito. Não se apagam. Jamais se apagarão... 
Bem perto, uns imigrantes recordam decerto a aventura partilhada na esperança de um futuro melhor. É dia de trabalho, mas não têm trabalho. Por ali estão. De quando em vez a conversa anima o pequeno grupo. Depois volta o silêncio. Frio como o frio das terras de origem do Leste. Olhares perdidos no horizonte sem fim. Sonhos desfeitos? Desejos de regressar? Fé no futuro? Certezas de que o amanhã será diferente? Melhor? Pior?
Do supermercado, gente volta com sacos cheios. Do necessário e do supérfluo. Do que faz falta e do que é dispensável. Da pastelaria da esquina, desprendem-se ondas de cheiros doces que convocam o bolo-rei de tantas tradições entre nós. Os olhares dos imigrantes acompanham os sacos e saboreiam os sabores natalícios que de graça lhes chegam pela memória. Adivinham o que levam e provam virtualmente o doce frutado. Sonham com sacos iguais a seu lado e recordam, por certo, iguarias de terras distantes, que são as suas. A fome de pão e de justiça social emagrece-os. A tristeza inunda os seus rostos esquálidos que os olhos esverdeados e a tez branca realçam. 
Um deles sai do grupo, apressado. Levanto-me também e caminho ao acaso pelos passeios do jardim. Uma volta, outra volta. E mais uma e outra. Cruzámo-nos outras tantas vezes. À minha frente segue agora. Passadas lentas. Cabeça baixa e olhos no chão. Aprecia a relva verdinha, cortada há pouco? De repente, baixa-se. Apanha uma beata ali perdida. Acende-a e fuma-a. Dá uma volta e olha para mim. Com uma indiferença que magoa, neste Natal.

Sem comentários:

Egas Moniz na estação do Porto

  Quando vou ao Porto, a capital do Norte, lembro-me com frequência dos painéis que decoram a sala de entrada da Estação Ferroviária. Nunca ...